O compartilhamento é a possibilidade de contato
Titular da 1a. Vara de Família e Sucessões de Cuiabá, Capital do Mato Grosso, a juíza Angela Gimenez tem larga experiência nas relações que envolvem casais, pais e filhos. Os 16 anos na área lhe credenciaram, inclusive, a colaborar com os senadores do seu Estado durante a formatação da nova Lei da Guarda Compartilhada, que entrou em vigor no mês passado, após aprovação no Congresso Nacional e sanção da presidente Dilma Rousseff (PT). A juíza é uma entusiasta da nova regra, que determina que, em caso de separação dos pais, as responsabilidades que envolvem as crianças e o tempo de convício com elas devem ser divididos igualitariamente. Defende a nova lei com argumentos científicos e acredita que o Judiciário não deixará de aplicá-la integralmente. Leia a seguir alguns trechos da entrevista concedida para A Tribuna, ontem, em um apartamento que a magistrada tem em Praia Grande.
Desde quando a senhora atua nessa área?
Me formei (em Direito) na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, sou paulista, mas estou no Mato Grosso há mais de 30 anos. Tenho 56 anos, fui advogada, professora universitária e sou juíza desde 1999, sempre atuando em Varas de Família. Também sou presidente da seção Mato Grosso do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Esse instituto é especializado e pretende não apenas implementar a utilização da lei e dar um vertente humanista, mas também atua junto ao Congresso Nacional visando as inovações. Uma das questões que temos tratado é o novo Estatuto das Famílias, para qualificar um pouco melhor essas leis. O instituto é composto por oito mil pessoas e é interdisciplinar, não é só ligado ao Direito, temos vários profissionais.
Como é trabalhar na Vara de Família, onde todas as ações envolvem sentimentos?
Você vai me ouvir falando muito Direito das Famílias, porque é uma posição político afirmativa, queremos mostrar que hoje não temos mais um único modelo. Em um passado recente só reconhecíamos oficialmente a família que estivesse constituída a partir do casamento. Quando tivemos alteração na lei, em 1988, conseguimos um primeiro um avanço. A própria Constituição reconheceu como família o casamento e a união estável, expressamente colocada como um homem e uma mulher. Mas a sociedade sempre anda mais rápido do que a lei, que só regulamenta uma forma de viver. Então, ainda tínhamos um grande número de famílias fora desse cenário. Fomos alargando o campo interpretativo e a jurisprudência, que são as decisões dos tribunais, avançou e antes mesmo da lei trazer já veio reconhecendo outras famílias. Foi o caso daquelas constituídas por um único genitor e o filho, só por irmãos e para situações homoafetivas. Estamos diante de uma grande questão agora: reconhecer ou não as famílias simultâneas. Uma pessoa não pode ter duas uniões estáveis ou casamento em nome do princípio da monogamia. Mas tem vindo para a Justiça situações de pessoas de boa fé que têm esses relacionamentos. Hoje reconhecemos uma multiplicidade de famílias. Antes a função social da família era reprodutiva e econômica. Quebramos esse paradigma: entendemos que o que une as pessoas é o afeto.
E como o Judiciário faz para reconhecer o afeto na relação familiar. Não é algo subjetivo para se avaliar em um processo?
De verdade, não há como, por uma decisão judicial, obrigar um pai ou uma mãe a amar. Mas é possível revelar esse afeto através do cuidado. Como juíza, eu não posso entrar no coração deles e falar: agora você ama. Não tem como. Mas posso exigir condutas de cuidados. E cuidar é conviver, se não tem convívio, não cuida.
Como foi a sua colaboração com o Congresso Nacional para a nova Lei da Guarda Compartilhada?
Os três senadores do meu Estado estavam bem envolvidos no tema, inclusive o relator foi o senador Jayme Campos (DEM-MT). Eu fui chamada em função do trabalho na magistratura para opinar sobre a alteração da lei. O senador Campos chamou para uma audiência pública, para que todos pudessem opinar. Participei também por fazer parte de várias comissões de estudos.
Quais que significa essa alteração na legislação?
A guarda compartilhada sempre existiu, porque ela vem do poder familiar. Ao se tornar pai ou mãe, a pessoa assume um direito e um dever de ter essa relação de pais e filhos. Pode orientar, cuidar, deliberar sobre a vida deles até que eles alcancem a maioridade. Entre pai e mãe existe um grau de equiparação, não existe superioridade de nenhum dos dois. O compartilhamento é essa possibilidade de contato, de orientação, igualitariamente. Isso fica natural quando as pessoas moram juntas. Mas e quando se separavam? As decisões dos tribunais começaram a privilegiar a permanência das crianças com as mães. Isso tem como justificativa a importância do afeto materno. Mas hoje a psicologia mostra que é possível o exercício das funções de pai e de mãe, independentemente do gênero da pessoa, homem ou mulher. Esse mito de que as crianças devem ficar preferencialmente com a mãe, caiu por terra.
Quais os principais pontos da nova lei, quais as obrigações?
A guarda compartilhada é o modelo legal, é o que deve ser prioridade no Judiciário. O modelo unilateral é exceção agora. A litigiosidade (briga na Justiça) e a discordância entre os genitores não fundamenta mais a concessão da guarda unilateral. O divórcio ou dissolução da união estável não deve interferir na relação com os filhos. A guarda compartilhada deve perseguir o ideal de 50% do tempo para cada um dos genitores. Se um deles ficar menos de 35% com os filhos, desconfigura o processo. E é bom lembrar que não há estudo científico de psicologia que mostre prejuízo para as crianças por conta da dupla residência (se dividindo entre a casa do pai e da mãe). Onde houver acolhimento e amor, haverá uma boa adaptação da criança à rotina que os pais escolherem.
Dividir o tempo da criança e o seu local de residência não seria guarda alternada, que não é prevista na nossa legislação?
Não. A compartilhada prevê o máximo de unicidade nas direções de vida da criança, como escola, religião, saúde, valores, que horas pode chegar em casa, quando pode começar a namorar. Essa orientação tem que ser unificada. E quando a guarda é da mãe, o pai participa muito pouco. Tanto que até meses atrás tínhamos o entendimento de que o pai exerceria visitas ao filho. E o pai não pode ser um visitante na vida do filho.
Mas, pela guarda compartilhada, o pai pode ficar com o filho quando quiser?
Pode ser livre ou o juiz estipula isso. Se não houver consenso entre os pais o juiz deve delimitar. O ideal é metade do tempo para cada um. Se os pais moram perto, porque não podem compartilhar essa rotina? Vai gerar um certo desconforto para adultos? Pode gerar. Mas o que queremos preservar são as crianças. O que não pode é, em razão de uma dificuldade de logística ou de comunicação entre pai e mãe, deixar a criança conviver com um só. Então vai deixar o filho crescer com metade da sua formação afetiva simplesmente porque vai trazer algum desconforto. Isso é absurdo e inaceitável.
Mas a lei anterior já dizia que a guarda compartilhada deveria ser aplicada sempre que possível, por que não era?
Bastaria que houvesse um desentendimento entre pai e mãe e o juízes entendiam que não era possível. Toda a situação de litígio poderia justificar que não era possível o compartilhamento. O direito, antes de tudo, é da criança, de ter convivência com os seus genitores. Se um não se entende com o outro, a situação dos filhos precisa estar acima de qualquer outra questão. Não se pode punir a criança com o afastamento de um dos dois porque eles não se entendem. Estamos propondo que a Justiça também se coloque a serviço, através de sessão de mediação com esses pais, para que eles entendam sua verdadeira função. Então, o modelo que nova lei trouxe como sendo o primeiro a ser utilizado é o compartilhamento, passando a guarda unilateral a ser uma exceção, inverteu-se.
E nos casos em que pai e mãe moram distantes, em cidades diferentes?
Teria um desnivelamento no compartilhamento, mas teria que ser o mínimo possível. Se os dois não conseguem dividir cotidianamente os 50% do tempo com os filhos, nos períodos de férias e feriados haveria um empurrar desse prato da balança para chegar o mais próximo possível disso. Ou seja, aquele que não está tão perto da criança desfrutaria desse tempo.
Mas há exceções na regra, que possibilitam a guarda unilateral….
Sim, quando um dos genitores não tiver aptidão para exercer o poder familiar. Se a pessoa está em uma situação de ilicitude, está gerando prejuízos para o filho, aí não tem como. E a lei traz outra exceção, que nós inclusive questionamos e estamos em debates. Quando um dos dois não quer, abre mão, possibilita que a guarda seja unilateral. Mas aí fica muito tranquilo e cômodo para aqueles pais que não querem ter responsabilidade nenhuma. É um direito ser pai, mas também é um dever. O juiz terá que fazer todo o esforço antes de aceitar o não quero, é preciso ter uma justificativa.
Na sua área, há muitas ações motivadas por vingança ou outras questões pessoais, que não deveriam ser decididas na Justiça. Como combater isso?
Temos todos os instrumentos para começar a aplicar com mais vigor a litigância de má-fé (punição em multa dada para a parte que altera a verdade dos fatos ou entra na Justiça para conseguir objetivo ilegal). Eu defendo que seja aplicada também a punição de deslealdade processual, que protege a Justiça. Não podemos continuar aceitando essa cultura de litigância que faz os processos demorarem. E quando se trata de criança, adolescente e afeto, todo minuto é sagrado.
Como a senhora avalia hoje o sistema de mediação no Judiciário?
A mediação avançou, mas precisa avançar mais. Não avançou todo porque sempre que é necessário implementar uma nova forma de julgar é necessário um espaço de capacitação. Nós viemos nos formando no decorrer dos anos para a mediação. Ela não é uma conciliação, por isso ela é tão rica e deve ser privilegiada. Porque na conciliação tem um tutor que vai ajudar as pessoas a encontrar um consenso para uma situação imediata, independentemente se as dores vão persistir. O tutor até apresenta propostas. A mediação não é isso, é um espaço de acolhimento e restabelecimento da comunicação.